segunda-feira, 28 de março de 2011

Estranho familiar : poesia corpórea.


Há um tipo de teatro em que não se interpreta um texto. Nele, o texto é o menos importante para a encenação. O que realmente vale, aí, é a partitura corporal do ator. O artista que trabalha nesse teatro não-interpretativo dá-se a si mesmo, sua própria pessoa, e é através da ação física que ele fala com o público e realiza a sua arte. Ele representa, não interpreta um texto. Cada ação física é o equivalente a um pedaço de sua emoção, sua alma, e o resultado cênico corre riscos, pois depende da reação da platéia, nem sempre acostumada a ver um teatro sem palavras ou com pouquíssimas delas.
Ora, esse trabalho de ator pressupõe buscar em sua própria pessoa as ações vivas que emergem de um princípio, uma história. Em "Estranho familiar", André Guerreiro Lopes e Nadja Turenkko contam para nós, a platéia, uma história, um conto maravilhoso da Literatura brasileira, que é o "Espelho", de João Guimarães Rosa; se você já leu esse conto, sabe que se trata de uma conversa de um personagem com outro, que seria o leitor do conto, a respeito da reflexões de um ser humano em um espelho. Bem, na peça "Estranho familiar" o personagem do conto de Rosa está contextualizado segundo uma sequência orgãnica de ações físicas e vocais predeterminadas pelo ator, dentro de seu vocábulário físico, e o que mais chama a atenção nesse tipo de labor corporal é a precisão com que ela é expressada.
Esses atores, do Estúdio Lusco-Fusco, trabalham com técnicas aculturadas de representação, como no balé clássico e na mímica de Decroux, mas há pontos em comum com a representação: há princípios que buscam um colocar-se fora do eixo do corpo, desequilibrando-se, mostrando-se fora do cotidiano habitual, voltando-se para o livre ato de representar sem a ajuda ( ou a prisão ) de um texto.
Bem, Decroux abominava a literatura, a quem ele chamava de "concubina, honesta diaba"; o Estúdio Lusco-Fusco não foi tão longe como o mestre, pois usou como matriz um conto da literatura brasileira, mas, se o espetáculo foi bom, bom foi também que tais atores tivessem essa postura dialética de rever os conselhos do mestre e sempre pesquisarem novas formas corporais de entretenimento através de uma poesia corporal.
Agora eu vou copiar uma frase do João Guimarães Rosa e dizer, como ele, "em linguagem de fim de semana", o que eu achei do espetáculo.
Uma das coisas mais bacanas dessa montagem é a duração da peça. Apenas 6o minutos. Isso é bom principalmente porque o público, que não está acostumado a esse tipo de encenação, precisa ter tempo para digerir o que viu. Acertou em cheio a diretora Djin Sganzerla.
Outra coisa muito legal: a participação de recursos audio-visuais no espetáculo. Ficou muito bom. Há um ensinamento do mestre Antunes Filho que é o seguinte: cada cena tem de ser mais espetacular que a cena que passou, e é isso o que acontece em "Estranho Familiar"; a próxima cena é sempre espetacularmente diferente da outra. Então você vê o trabalho corporal preciso dos atores, as reflexões orgânicas de um grande conto da literatura brasileira e ainda uma sequência de cenas espetaculares com recursos audio-visuais criativos. A sonoplastia é claramente uma música de pesquisa; não é do estilo erudito, mas, pela consagração nas buscas sonoras em trabalhos sobre esses temas, já é um clássico. Vale a pena ouvir.
O figurino respeita profundamente o texto de Guimarães Rosa, quando este fala de austeridade, honestidade do homem refletido no espelho. Esse figurino se remontou ao que nós chamamos de alienação em arte, quando o artista se transporta para um mundo não dependente do objeto, para de lá retornar com a solução que todos, objetivamente, aprovam, como representativa daquilo que se esperava, contudo não se conseguia concretizar. E os efeitos especiais estão em toda parte, nesse trabalho. São tão ótimos que chamam a atenção por si só. E nisso, porém, o Estúdio Lusco-Fusco devia se deter, para solucionar problemas futuros, pois se o público presta atenção nos efeitos, perde o tempo de olhar para a cena. Eu acho melhor tomar cuidado.
Enfim, um trabalho que vale ser conferido. o Estranho familiar está em cartaz no teatro Ágora, sábados e domingos. Vá lá ver, ok?

domingo, 6 de março de 2011

Cheiro do céu

Ontem fui assistir a "Cheiro do Céu", de Mário Viana. A peça me lembrou de duas épocas memoráveis do teatro mundial: as comédias aristofãnicas e os dramas cômicos do Romantismo. A gente pode chamar o texto do Mário Viana de aristofânico, porque as formas desse tipo de trabalho envolvem o sexo,e, no caso de Aristófanes, feito pelos sátiros e outros bichos; em "O Cheiro do Céu", é a nobreza cristã e a classe menos favorecida que se enrolam e se amam, num fenômeno que lembra também o teatro romântico de comédia, com entra-e-sai dos personagens, todos eles enganados e enganando, a escaramuça rolando solta, e a brincadeira sexual e ingênua, presente o tempo todo.
Para se produzir uma comédia, segundo os latinos tardios de depois de Cristo, o autor deveria começar a escrever algo sobre um grande problema entre nobres e plebeus a ser resolvido, e depois criar as reviravoltas para resolvê-lo, e por fim tudo se tornaria na mais profunda paz, sempre segundo um ensinamento moral, dito pela boca do protagonista. O Mário Viana seguiu a regra clássica, mas, no pano de fundo, deixou uma violenta crítica social e política. "A mais profunda paz" em que a comédia latina deve terminar, no texto de Mário, transforma-se na mais profunda falta de vergonha por parte dos políticos e da classe dos bem nascidos. Mas em nenhum momento o Mário deixa isso explícito. É na ação que a mensagem é passada ao espectador, isto é, o público entende o recado se ele já sabe que não é justo agir como os nobres agiram na peça. É a técnica quebrando regras e realizando a função do drama de forma diferente, o que caracteriza uma obra de arte. Se você prestar atenção nisso, quando for assistir ao espetáculo, vai ver que há coisas em nossa vida social que precisam ser mudadas, a começar pelo espírito do homem. É bacana ver um texto caminhar como um clássico e a mensagem do final não ser falada, mas ao mesmo tempo ser transmitida tão claramente. Observe isso quando for ver esse excelente labor dramatúrgico.
Eu não vou contar a história, mas tudo começa em um reino onde o rei não pode ter filhos. O cenário é simples e despojado, e a iluminação conversa amigavelmente com a comédia que está sendo apresentada. Não gostei, contudo, de deixarem o palco vazio de gente, em algumas cenas: o espectador fica olhando o nada, e, embora o cenário e a luz fiquem trabalhando, não há seres humanos ali. Teatro, e de comédia, tem de ser assim: saiu um, entrou o outro. A própria peça pede isso, essa rapidez; inclusive, os atores cumpriam bem esse papel, em muitos momentos. Não sei se eles "comeram barriga", como se diz, ou se o diretor realmente pediu para eles ficarem esperando mudar a luz para entrarem. Fica aqui registrado o meu convite para experimentar a entrada e saída de personagens de outra forma. Comédia pede gente em cena e agilidade na mudança.
Mas o elenco é ótimo. A menina que interpreta Angelina, a mendiga, é uma comediante que tem certeza daquilo que faz e tranquilidade na hora de fazer. Ela brinca em cena, e isso é uma coisa difícil de se conseguir: entender tão bem o texto do Mário Viana e apresentá-lo com a suavidade de quem toma um sorvete!
Enfim, um figurino de acordo com a leveza cômica do espetáculo e o diálogo que a sonoplastia fez

com o texto tornaram "Cheiro do Céu" um bom divertimento. O texto é uma obra de arte. Estão nos Parlapatões, sábados e domingos. Vá conferir!

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

À meia noite, um solo de sax na minha cabeça

 

Quando eu era garota, meus  pais não me deixavam ir a muitos lugares. Fazer trabalho escolar na casa dos amigos era  um dramalhão mexicano. E eu fui criando a casa de caracol que há em mim, e me sinto, hoje, muito protegida com ela. Mas nem sempre foi assim. Houve um momento na minha vida em que eu realmente sofria por não poder sair de casa. Por exemplo, naquela época, o Festival de Iacanga ia acontecer. Iacanga era pra mim uma espécie de terra prometida em que eu nunca iria entrar. Por isso é que, quando tocou um solo de sax na cabeça do Billy, em Iacanga, eu pensei : "em que outro lugar seria possível?"
 O solo de sax que tocou naquele instante em Iacanga  é um hino de liberdade. E de esperança. Eu não sei se o Mário Bortolotto queria ir para Iacanga e não pôde também, mas o fato de ele ter escolhido tocar o solo de sax ali é perfeito pra mim, lembra-me da menina encarcerada que eu era, e do meu sonho de ser livre para fazer o que eu quisesse.
  Eu comecei assim pela minha emoção diante da  peça,  porque uma das características da obra de arte é ela impactar o observador. São dois impactos: emocional e estético. Já expliquei o impacto emocional, que você pode ter durante o seu momento pessoal no espetáculo. Pode ser, por exemplo, durante as carinhas fofas de nenenzinho que o Esposito faz, pode ser o balé desenfreado do Stroetter, escolha o seu. Vamos agora falar da estética, respondendo à seguinte pergunta: À meia noite um solo de sax na  minha cabeça é uma obra de arte?
  Pra começar, uma das regras da dramaturgia é  escrever divertindo e ensinando. Mário Bortolotto não está aparentemente ensinando nada nesse texto. Não ensina a importância da amizade, porque aquela união não é verossímil, outra regra que ele quebra. Mas acontece que uma das características da obra de arte é quebrar uma regra e propor outra coisa no lugar. Até agora,  Mário quebrou duas. O que ele colocou no lugar delas é o que vai salvar a peça do abismo. Ou não.
  Bom, ele deixa de ensinar no texto pra ensinar na direção, mais precisamente no cenário. Então você sabe que houve uma história no Brasil , e  a sonoplastia mostra o que de legal foi produzido pelo tempo que o Mário recortou na dramaturgia. E ele põe os atores trocando de figurino em cena. Você pode dizer que tudo isso está cheirando a teatro brechtiniano, mas não é, porque uma das regras desse teatro é ensinar ao público algo, para que ele aja de maneira decisiva na sociedade, e o Mário pára por aí: no telão, no figurino e na música. No texto, são dois amigos se divertindo. Terceira regra que ele quebra.
  Então, como é que se faz? Perguntemos se há alguma regra de arte que ficou de pé nessa peça. É claro que há, e não sei se o Mário pensou nisso. Pra mim ele foi escrevendo. Porque eu não vejo o Mário Bortolotto nos corredores da Filosofia, com seus livros sem capa, praguejando contra Poéticas, ou lendo em latim na biblioteca. Mas vamos saber qual regra ele utilizou.
  Acontece que há muito, muito tempo, para se escrever, era preciso agir como o pintor. Estamos falando do Renascimento, quando o primeiro romance foi publicado. E, naquele momento, a pintura era superposta em camadas, assim como na literatura. Então o observador via um pano de fundo, depois um cenário, e então os personagens, e daí ele via o tema central do qual falavam os personagens, e assim era na literatura e na pintura.
  O Mário fez isso na dramaturgia. O pano de fundo é  a passagem do tempo, que se pode observar na sonoplastia, no cenário e no figurino, este, que foi um amigo do dramaturgo. O figurino dialoga com o texto. Quando você for ver a peça, preste atenção na cena de Paris. É o figurinista Solomovici dando um solo de guitarra. É hilariante.
   A outra superposição que o Mário fez fica por conta da amizade. Mas ela não é crível, não é possível.Um filho de prostituta sequer nasce na mesma maternidade que um bebê bem nascido. Há outra coisa, abstrata, que está lá pulsando. E pulsa mais forte que a outra superposição pictórica, que são os personagens Jesse e Billy: é a existência.
   Existir e fazer a própria vida. Isso não é ensinamento, isso é constatação. É uma filosofia de vida, é o resultado de um trabalho de dramaturgia em que não se quis colocar um só fundamento dramático em pé. E é muito difícil se colocar apenas a existência em cena, sem ser um porre para o público.
  Eu gosto de artistas que quebram regras. Pollock quebrou as regras de Picasso, mas ficou com o estudo das cores do Renascimento. Mário dispara contra quatro fundamentos dramáticos, mas ficou com o que há de abstrato na condição humana, e fez uma bela peça de teatro com isso.
  Olhe, vale a pena você sair de sua casa na terça feira pra ir ver essa peça. Humildemente peço que vá ver pensando nisso que eu te falei, nas regras, na superposição, no figurino, nos atores...e tenha seu próprio momento de emoção, ele está lá esperando para ser descoberto, confie. É terça e quarta, 21horas, nos Parlapatões, tá? Ingresso 30 e 15 reais.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Corações under rock: diferenciando as safras

 Primeiramente temos de dar graças a Deus por alguém, no caso, essa turma de artistas de Londrina, terem tido a força de produzir, e nos transmitir alguma coisa que seja através do veículo poderoso que é o teatro. Certos temas que eles pesquisam são tão absorvidos pela cena de palco, que o teatro os devolve ao público sob formas simbólicas que, no caso dos artistas de  Londrina, como Márcio Américo, nos fala de modernidade, do tempo,  dos loosers da noite e, principalmente, da amizade, e, essa, a jóia que os textos deles nos oferecem.
 A amizade é um tema caro aos beatniks. Foram eles que influenciaram alguns dos  importantes artistas dos anos 80. Essa época, devo confessar, porque também fui dessa geração, foi muito brega. As roupas, o cabelo feio, como dizia Dercy Gonçalves a respeito do problema, tornaram essa fase desinteressante, exceto por uma  coisa: pelos livros que a Companhia das Letras publicavam. Circo de Letras foi uma coleção muito importante, e nós podíamos tomar contato com autores como Walth Withmann, poeta árcade norte-americano, Laurence Ferlinghetti, Kerouac, Sam Sheppard, Corso, Piva, e todos esses caras que fizeram a nossa cabeça, entre elas, a de Márcio Américo.
 E o tema de Corações under rock é a amizade.  A peça obedece estritamente à regra do drama horaciano, que se realiza por séculos: ensinar enquanto diverte. Brecht "modernizou" essa regra, ele disse que a função do drama é "ensinar divertindo",  pra você ver ...A função do drama, portanto, é algo orgânico da dramaturgia, intrínseco a ela, quer seja intencional ou não, e que caracteriza a boa peça de teatro.Ensinar divertindo. E ensinar que "a amizade é importante", sem ser chato, é uma coisa que o Márcio Américo fez nessa peça, e sua segunda virtude.
 A gente pode até falar que Márcio Américo fez gracinha. Mas aí o público ri, e relaxa a mente, vai sendo minuciosamente embromado, para entrar no espírito da peça, e quando nós nos damos por nós mesmos estamos sensivelmente tocados pela amizade dos dois personagens do texto . Ele nos divertia facilmente sim, mas nos guiava o caminhar, e quem guia o caminhar é o pedagogo, ou aquele que guia o caminho. Viu, a peça do Márcio Américo é genuína dramaturgia. Ensina divertindo. Eu não vou contar a história, mas é sobre um looser imerecidamente looser, porque é um bom autor, e seu amigo stand up comedy.
 A gente pode até criticar, pô, então fala sobre temas importantes, escreve uma tragédia aí. Não foi o caso. Ele não quis falar sobre isso. O tema é a amizade numa comédia leve, cuja palava mais difícil é "James Joyce".
 Mas eu queria falar mesmo é da direção. A Lúcia Segall, nos anos 80, fazia experimentações dramáticas no Cpt de Antunes Filho, fazia lá seu trabalho de formiguinha,  como diz o Antunes. E essa experimentação amadureceu. Ela não é minimalista, pelo menos neste espetáculo, mas a gestualidade e as marcas que ela aprova são suficientes para dar vida aos personagens de acordo com o mundo em que eles vivem, e mais do que suficiente não é necessário. A direção, racional, limpa, econômica, a pontuação na sonoplastia, a luz, nada incomodava por estar sobrando, mas tudo ali era preciso. Enxuto. Isso requer pulso de diretor.
  Os atores fizeram um teatro naturalista condizente com o espetáculo, e o corpo deles, mais uma aprovação feliz da Lúcia Segall, traduzia os momentos certos. Destaque para uma dança pequenina do pé de Nelson Perez, quando mente que conseguiu um contrato na televisão.
  Esse espetáculo,  se for visto como produto de uma geração de artistas de Londrina, pode ser apreciado com maior sabor, como a gente aprecia aquelas safras maravilhosas de vinho. Cada safra diferente da outra, é bom pra conhecer.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Um vídeo muito sério.

 Falar do cotidiano. Conhecer a vida de pessoas diferentes de você, e perder o preconceito que se tem sobre elas. Falar de simplicidade, com ritmo. Com imagem e som. Tudo isso  garante uma obra de arte?
 Vamos falar do vídeo A alucinante vida de Rolha Jackson , de Maicknuclear de los Santos Angeles. Maicknuclear é um artista falando de seu tempo, e de temas de que a gente não costuma saber. Quando um filme comercial fala das pessoas que vivem na marginalidade, não se detém nelas mesmas, mas na história na qual estão envolvidas. Maicknuclear  mostra o que pode viver um  menino passador de droga, quando está fora de seu trabalho. Que tipo de vida pode ele levar, quando se distrai.
 Maicknuclear apresenta o que já é conhecido. Um garoto passador de droga. Mas ele mostra seu personagem, conhecido, sob a forma do desconhecido. Essa técnica provoca o espectador, desperta o interesse. O leitor do vídeo deseja ouvir o resto da conversa do garoto, porque ele tem interesse de saber o que faz um passador de droga  nas horas vagas. Se fosse só uma espectativa, uma proposta de roteiro, o vídeo não vingaria. Mas ele mostra uma situação inusitada, uma narração que o observador não espera. Apresentar um roteiro não é ter uma idéia genial, e não saber como a desenvolver. Apresentar um roteiro é fazer o observador estranhar. É saber provocar. É isso que o leitor quer. E é isso que Maicknuclear faz.
  Então, Maicknuclear tem uma artimanha. Uma malandragem, para iludir o leitor durante a apreciação das  imagens, e é isso que prende a atenção.Ela está na narrativa e no plano da filmagem. Ele mostra a boca do personagem, e,  por vezes, mãos. E resolve o problema estético de um marginal narrando suas aventuras. É isso que interessa o leitor. Há uns flashes na fala do menino; ele pergunta se "está suado", isto é, se a polícia está por ali. Esse é um ardil para que o observador não perca de vista que o garoto é um passador, um marginal, que está realizando seu trabalho, enquanto conta sua história engraçada.
  O que é a moral? A moral, segundo Sartre, é o que todo mundo escolheria. Ora, nem eu nem você escolheríamos uma atividade tão perigosa, mas no vídeo de Maicknuclear, a moral não reside em você ou eu escolhermos ou não aquela vida. Ele transcende essa questão, a fim de voltar os sentidos do observador para a moral durante a fala do narrador. Quer dizer, se eu ou você estivéssemos numa atividade comercial deste tipo, levaríamos um tipo de vida que não prescindiria de vivermos parte dela nos divertindo, e a moral de Maicknuclear é essa: todo mundo é humano, todo mundo se diverte, todo mundo passa o tempo de alguma forma prazerosa. Essa saída é boa, porque o filme não perde a função moral que toda obra de arte deve ter. Ele nos faz quebrar o preconceito, porque o menino passador de droga é igual a todos os outros garotos, e sua forma de se divertir, embora estranha (e é nisso que reside a aventura),  é interessante e simples, como a vida deve ser.
 Essa obra é um vídeo de entretenimento, mas não nos deixemos levar pelo ar inocente com que é apresentado. Maicknuclear nos diverte ensinando, e ensinar a conviver com as diferenças morais e suas escolhas é coisa muito séria.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Grima Grimaldi ensina Kerouac

 A arte pode ser encontrada em vários momentos do cotidiano. Temos a arte do dentista, a arte do marcineiro, a arte do pedreiro. E a arte do vídeo? Bem, o que diferencia essa arte das outras é que a arte da imagem e do som comunica alguma coisa ao espectador.
 Mas essa comunicação, para ser arte, tem de responder a algumas perguntas do ramo da estética. Primeiro, ela deve causar impacto emocional, porque fala de algo ou alguém que emociona, e também porque é  bonita. Vejamos esse video do Grima Grimaldi, "Jack Kerouac". Primeiro ele impacta porque, independentemente de você conhecer Kerouac, o vídeo está apresentando esse grande escritor do século passado a você, e você sente que o cara em questão era boa gente: você vê noite, estrada, cigarros, sorrisos de mulher, e tudo num arranjo em ritmo rápido, isso não é emocionante? É, sim. E é bonito também, esse arranjo tem uma harmonia que liga todas as partes do vídeo em uma unidade só, que emociona e agrada os sentidos.
 Mas não é só isso, né? Pra ser uma obra de arte, o vídeo em questão tem de quebrar alguma regra. Vamos compará-lo com as regras da televisão e dos clipes modernos. Noventa por cento dos clipes que vemos na televisão não mostram esse tipo de rearranjo de cenas. Nós vemos início, meio e fim de um trabalho videográfico. Mas nós não vemos essa preocupação no filme do Grima. É porque ele quebrou uma regra estética. Bem, vamos somar. O vídeo agradou estética e emocionalmente e quebra uma regra da arte de videografar .
 Não, não terminou. Ainda não pode ser chamado de obra de arte. É preciso que o artista tenha usado uma técnica que realize a intenção que ele teve ao concretizar  seu trabalho. E, para isso, é preciso saber se o objeto da experiência dele e as colagens em ritmo alucinante que ele fez, somadas com a música, falam mesmo de Jack Kerouac. Bem, quem é esse cara?

  Jack Kerouac é um escritor beatnik dos anos 5O. Seu livro On the Road vendeu e vende milhões de cópias por ano, e sua literatura influenciou o movimento hippie. Na verdade, os hippies surgiram por causa dos beatniks. Beat é uma batida, um modo de fazer poesia, um grupo de pessoas que fazem poesia. Beat é pobreza e divertimento. Beat é andar pela estrada, os olhos vendo o mundo. No vídeo do Grima, há essa cena, de olhos vendo o mundo, como criança. Sim, e as mulheres...a dança...está lá no vídeo, tudo o que de importante diz respeito a Jack Kerouac. E foi o Grima quem juntou tudo e pôs um arranjo imagético e sonoro ( Gang 90 e as absurdettes gravaram a música Kerouac nos anos 80), que faz a gente ver o ví:deo e dizer que isso sim é obra de arte.
 O mais legal de tudo isso, é que o Grima fez esse vídeo em um dia. Há aqueles que demoram um pouco mais para apresentar seu trabalho, e há artistas do tipo do Grima. Se o resultado correspondeu ao que a Filosofia estética pensa por arte, é um trabalho e tanto...

O segredo ou A Confissão

 A peça, bem,  eu nem sei se se chama O Segredo ou se tem outro nome. Acho que é A Confissão.Não fiquei atenta. Aliás, não dá para prestar atenção na peça. No final, eu perguntei a minha acompanhante, afinal, qual era o segredo, ou a confissão, e ela também não sabia. Arriscou uma resposta psicológica, meio como que se desculpasse por também ter pensado em outra coisa durante todo o espetáculo.
  Vamos lá. O texto. O dramaturgo, de quem eu também não sei o nome, estava estreando no  seu primeiro trabalho de dramaturgia. Tratava-se de uma Mostra de trabalhos recém criados, sob a batuta do mestre Chico de Assis. Uma coisa que o Chico sabe fazer é ensinar a escrever a estrutura do texto dramatúrgico. Mas uma coisa é ter a estrutura certa, outra é escrever uma peça de arte.
  O jovem dramaturgo trabalhou uma estrutura textual muito bem tecida. É um bom aluno. Soube retomar o tema principal da sua pequena peça durante o espetáculo, de modo que o público sabia minimamente do que a peça tratava: de uma confissão ou de um segredo. O texto também continha uma pequena história. É aí que reside o problema. O público só sabe que houve um segredo, e sangue, e uma árvore. Porque faltaram o empenho em mostrar no texto qual é mesmo o problema, e o esforço do ator por deixar isso claro.
  A peça é um monólogo. Monólogos são difíceis de se fazer. Exigem uma partitura vocal e corporal que chamem a atenção do observador, e infelizmente, o ator, muito jovem para a empreitada, só "deu o texto", como costumamos dizer. Mas o texto que ele deu foi bem dado, isto é, com uma altura e articulação vocais dignas, embora faltasse o valor que cada palavra tem. Não dar esse valor para as palavras  equivale a tirar a atenção do público pros próprios problemas do cotidiano, e aí não há mais teatro, já que a mente do público não está mais ligada ao lugar de onde se vê a peça.
  A iluminação foi competente, mas por vezes deixava o ator no escuro. E isso pressupõe que o iluminador ou estava fazendo a luz naquele momento, ou perdeu o ritmo do texto.
  A direção mostrava segurança, afinal, foi feita pelo próprio Chico. As marcas eram exatamente o que o texto pedia, e neste sentido, o trabalho do diretor cumpriu a tarefa de comunicar algo da escritura. Seria bom se o Chico também ensinasse a dirigir, além de escrever.
  Porém, a peça não naufragou. Embora as pessoas não saibam até hoje o que era mesmo o sangue e a árvore, e a cabeça de quem tinha sido cortada?-Se é que foi cortada-, e por que o narrador da história estaria num asilo psiquiátrico? valeu a peça pelo resultado de um processo de dramaturgia e do processo de um ator que ainda está descobrindo sua arte. Alguém tem de preparar os futuros artistas, e espetáculos como esse ensinam a eles como devem agir no próximo trabalho. Minha primeira peça foi ruim. Depois, eu obtive elogios em toda mídia impressa, dos críticos mais exigentes do teatro. É por que a gente aprende com o tempo e com aquilo que falam pra nós.
 Mais sorte na próxima, garotos.