quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

À meia noite, um solo de sax na minha cabeça

 

Quando eu era garota, meus  pais não me deixavam ir a muitos lugares. Fazer trabalho escolar na casa dos amigos era  um dramalhão mexicano. E eu fui criando a casa de caracol que há em mim, e me sinto, hoje, muito protegida com ela. Mas nem sempre foi assim. Houve um momento na minha vida em que eu realmente sofria por não poder sair de casa. Por exemplo, naquela época, o Festival de Iacanga ia acontecer. Iacanga era pra mim uma espécie de terra prometida em que eu nunca iria entrar. Por isso é que, quando tocou um solo de sax na cabeça do Billy, em Iacanga, eu pensei : "em que outro lugar seria possível?"
 O solo de sax que tocou naquele instante em Iacanga  é um hino de liberdade. E de esperança. Eu não sei se o Mário Bortolotto queria ir para Iacanga e não pôde também, mas o fato de ele ter escolhido tocar o solo de sax ali é perfeito pra mim, lembra-me da menina encarcerada que eu era, e do meu sonho de ser livre para fazer o que eu quisesse.
  Eu comecei assim pela minha emoção diante da  peça,  porque uma das características da obra de arte é ela impactar o observador. São dois impactos: emocional e estético. Já expliquei o impacto emocional, que você pode ter durante o seu momento pessoal no espetáculo. Pode ser, por exemplo, durante as carinhas fofas de nenenzinho que o Esposito faz, pode ser o balé desenfreado do Stroetter, escolha o seu. Vamos agora falar da estética, respondendo à seguinte pergunta: À meia noite um solo de sax na  minha cabeça é uma obra de arte?
  Pra começar, uma das regras da dramaturgia é  escrever divertindo e ensinando. Mário Bortolotto não está aparentemente ensinando nada nesse texto. Não ensina a importância da amizade, porque aquela união não é verossímil, outra regra que ele quebra. Mas acontece que uma das características da obra de arte é quebrar uma regra e propor outra coisa no lugar. Até agora,  Mário quebrou duas. O que ele colocou no lugar delas é o que vai salvar a peça do abismo. Ou não.
  Bom, ele deixa de ensinar no texto pra ensinar na direção, mais precisamente no cenário. Então você sabe que houve uma história no Brasil , e  a sonoplastia mostra o que de legal foi produzido pelo tempo que o Mário recortou na dramaturgia. E ele põe os atores trocando de figurino em cena. Você pode dizer que tudo isso está cheirando a teatro brechtiniano, mas não é, porque uma das regras desse teatro é ensinar ao público algo, para que ele aja de maneira decisiva na sociedade, e o Mário pára por aí: no telão, no figurino e na música. No texto, são dois amigos se divertindo. Terceira regra que ele quebra.
  Então, como é que se faz? Perguntemos se há alguma regra de arte que ficou de pé nessa peça. É claro que há, e não sei se o Mário pensou nisso. Pra mim ele foi escrevendo. Porque eu não vejo o Mário Bortolotto nos corredores da Filosofia, com seus livros sem capa, praguejando contra Poéticas, ou lendo em latim na biblioteca. Mas vamos saber qual regra ele utilizou.
  Acontece que há muito, muito tempo, para se escrever, era preciso agir como o pintor. Estamos falando do Renascimento, quando o primeiro romance foi publicado. E, naquele momento, a pintura era superposta em camadas, assim como na literatura. Então o observador via um pano de fundo, depois um cenário, e então os personagens, e daí ele via o tema central do qual falavam os personagens, e assim era na literatura e na pintura.
  O Mário fez isso na dramaturgia. O pano de fundo é  a passagem do tempo, que se pode observar na sonoplastia, no cenário e no figurino, este, que foi um amigo do dramaturgo. O figurino dialoga com o texto. Quando você for ver a peça, preste atenção na cena de Paris. É o figurinista Solomovici dando um solo de guitarra. É hilariante.
   A outra superposição que o Mário fez fica por conta da amizade. Mas ela não é crível, não é possível.Um filho de prostituta sequer nasce na mesma maternidade que um bebê bem nascido. Há outra coisa, abstrata, que está lá pulsando. E pulsa mais forte que a outra superposição pictórica, que são os personagens Jesse e Billy: é a existência.
   Existir e fazer a própria vida. Isso não é ensinamento, isso é constatação. É uma filosofia de vida, é o resultado de um trabalho de dramaturgia em que não se quis colocar um só fundamento dramático em pé. E é muito difícil se colocar apenas a existência em cena, sem ser um porre para o público.
  Eu gosto de artistas que quebram regras. Pollock quebrou as regras de Picasso, mas ficou com o estudo das cores do Renascimento. Mário dispara contra quatro fundamentos dramáticos, mas ficou com o que há de abstrato na condição humana, e fez uma bela peça de teatro com isso.
  Olhe, vale a pena você sair de sua casa na terça feira pra ir ver essa peça. Humildemente peço que vá ver pensando nisso que eu te falei, nas regras, na superposição, no figurino, nos atores...e tenha seu próprio momento de emoção, ele está lá esperando para ser descoberto, confie. É terça e quarta, 21horas, nos Parlapatões, tá? Ingresso 30 e 15 reais.