segunda-feira, 28 de março de 2011

Estranho familiar : poesia corpórea.


Há um tipo de teatro em que não se interpreta um texto. Nele, o texto é o menos importante para a encenação. O que realmente vale, aí, é a partitura corporal do ator. O artista que trabalha nesse teatro não-interpretativo dá-se a si mesmo, sua própria pessoa, e é através da ação física que ele fala com o público e realiza a sua arte. Ele representa, não interpreta um texto. Cada ação física é o equivalente a um pedaço de sua emoção, sua alma, e o resultado cênico corre riscos, pois depende da reação da platéia, nem sempre acostumada a ver um teatro sem palavras ou com pouquíssimas delas.
Ora, esse trabalho de ator pressupõe buscar em sua própria pessoa as ações vivas que emergem de um princípio, uma história. Em "Estranho familiar", André Guerreiro Lopes e Nadja Turenkko contam para nós, a platéia, uma história, um conto maravilhoso da Literatura brasileira, que é o "Espelho", de João Guimarães Rosa; se você já leu esse conto, sabe que se trata de uma conversa de um personagem com outro, que seria o leitor do conto, a respeito da reflexões de um ser humano em um espelho. Bem, na peça "Estranho familiar" o personagem do conto de Rosa está contextualizado segundo uma sequência orgãnica de ações físicas e vocais predeterminadas pelo ator, dentro de seu vocábulário físico, e o que mais chama a atenção nesse tipo de labor corporal é a precisão com que ela é expressada.
Esses atores, do Estúdio Lusco-Fusco, trabalham com técnicas aculturadas de representação, como no balé clássico e na mímica de Decroux, mas há pontos em comum com a representação: há princípios que buscam um colocar-se fora do eixo do corpo, desequilibrando-se, mostrando-se fora do cotidiano habitual, voltando-se para o livre ato de representar sem a ajuda ( ou a prisão ) de um texto.
Bem, Decroux abominava a literatura, a quem ele chamava de "concubina, honesta diaba"; o Estúdio Lusco-Fusco não foi tão longe como o mestre, pois usou como matriz um conto da literatura brasileira, mas, se o espetáculo foi bom, bom foi também que tais atores tivessem essa postura dialética de rever os conselhos do mestre e sempre pesquisarem novas formas corporais de entretenimento através de uma poesia corporal.
Agora eu vou copiar uma frase do João Guimarães Rosa e dizer, como ele, "em linguagem de fim de semana", o que eu achei do espetáculo.
Uma das coisas mais bacanas dessa montagem é a duração da peça. Apenas 6o minutos. Isso é bom principalmente porque o público, que não está acostumado a esse tipo de encenação, precisa ter tempo para digerir o que viu. Acertou em cheio a diretora Djin Sganzerla.
Outra coisa muito legal: a participação de recursos audio-visuais no espetáculo. Ficou muito bom. Há um ensinamento do mestre Antunes Filho que é o seguinte: cada cena tem de ser mais espetacular que a cena que passou, e é isso o que acontece em "Estranho Familiar"; a próxima cena é sempre espetacularmente diferente da outra. Então você vê o trabalho corporal preciso dos atores, as reflexões orgânicas de um grande conto da literatura brasileira e ainda uma sequência de cenas espetaculares com recursos audio-visuais criativos. A sonoplastia é claramente uma música de pesquisa; não é do estilo erudito, mas, pela consagração nas buscas sonoras em trabalhos sobre esses temas, já é um clássico. Vale a pena ouvir.
O figurino respeita profundamente o texto de Guimarães Rosa, quando este fala de austeridade, honestidade do homem refletido no espelho. Esse figurino se remontou ao que nós chamamos de alienação em arte, quando o artista se transporta para um mundo não dependente do objeto, para de lá retornar com a solução que todos, objetivamente, aprovam, como representativa daquilo que se esperava, contudo não se conseguia concretizar. E os efeitos especiais estão em toda parte, nesse trabalho. São tão ótimos que chamam a atenção por si só. E nisso, porém, o Estúdio Lusco-Fusco devia se deter, para solucionar problemas futuros, pois se o público presta atenção nos efeitos, perde o tempo de olhar para a cena. Eu acho melhor tomar cuidado.
Enfim, um trabalho que vale ser conferido. o Estranho familiar está em cartaz no teatro Ágora, sábados e domingos. Vá lá ver, ok?

domingo, 6 de março de 2011

Cheiro do céu

Ontem fui assistir a "Cheiro do Céu", de Mário Viana. A peça me lembrou de duas épocas memoráveis do teatro mundial: as comédias aristofãnicas e os dramas cômicos do Romantismo. A gente pode chamar o texto do Mário Viana de aristofânico, porque as formas desse tipo de trabalho envolvem o sexo,e, no caso de Aristófanes, feito pelos sátiros e outros bichos; em "O Cheiro do Céu", é a nobreza cristã e a classe menos favorecida que se enrolam e se amam, num fenômeno que lembra também o teatro romântico de comédia, com entra-e-sai dos personagens, todos eles enganados e enganando, a escaramuça rolando solta, e a brincadeira sexual e ingênua, presente o tempo todo.
Para se produzir uma comédia, segundo os latinos tardios de depois de Cristo, o autor deveria começar a escrever algo sobre um grande problema entre nobres e plebeus a ser resolvido, e depois criar as reviravoltas para resolvê-lo, e por fim tudo se tornaria na mais profunda paz, sempre segundo um ensinamento moral, dito pela boca do protagonista. O Mário Viana seguiu a regra clássica, mas, no pano de fundo, deixou uma violenta crítica social e política. "A mais profunda paz" em que a comédia latina deve terminar, no texto de Mário, transforma-se na mais profunda falta de vergonha por parte dos políticos e da classe dos bem nascidos. Mas em nenhum momento o Mário deixa isso explícito. É na ação que a mensagem é passada ao espectador, isto é, o público entende o recado se ele já sabe que não é justo agir como os nobres agiram na peça. É a técnica quebrando regras e realizando a função do drama de forma diferente, o que caracteriza uma obra de arte. Se você prestar atenção nisso, quando for assistir ao espetáculo, vai ver que há coisas em nossa vida social que precisam ser mudadas, a começar pelo espírito do homem. É bacana ver um texto caminhar como um clássico e a mensagem do final não ser falada, mas ao mesmo tempo ser transmitida tão claramente. Observe isso quando for ver esse excelente labor dramatúrgico.
Eu não vou contar a história, mas tudo começa em um reino onde o rei não pode ter filhos. O cenário é simples e despojado, e a iluminação conversa amigavelmente com a comédia que está sendo apresentada. Não gostei, contudo, de deixarem o palco vazio de gente, em algumas cenas: o espectador fica olhando o nada, e, embora o cenário e a luz fiquem trabalhando, não há seres humanos ali. Teatro, e de comédia, tem de ser assim: saiu um, entrou o outro. A própria peça pede isso, essa rapidez; inclusive, os atores cumpriam bem esse papel, em muitos momentos. Não sei se eles "comeram barriga", como se diz, ou se o diretor realmente pediu para eles ficarem esperando mudar a luz para entrarem. Fica aqui registrado o meu convite para experimentar a entrada e saída de personagens de outra forma. Comédia pede gente em cena e agilidade na mudança.
Mas o elenco é ótimo. A menina que interpreta Angelina, a mendiga, é uma comediante que tem certeza daquilo que faz e tranquilidade na hora de fazer. Ela brinca em cena, e isso é uma coisa difícil de se conseguir: entender tão bem o texto do Mário Viana e apresentá-lo com a suavidade de quem toma um sorvete!
Enfim, um figurino de acordo com a leveza cômica do espetáculo e o diálogo que a sonoplastia fez

com o texto tornaram "Cheiro do Céu" um bom divertimento. O texto é uma obra de arte. Estão nos Parlapatões, sábados e domingos. Vá conferir!