domingo, 6 de março de 2011

Cheiro do céu

Ontem fui assistir a "Cheiro do Céu", de Mário Viana. A peça me lembrou de duas épocas memoráveis do teatro mundial: as comédias aristofãnicas e os dramas cômicos do Romantismo. A gente pode chamar o texto do Mário Viana de aristofânico, porque as formas desse tipo de trabalho envolvem o sexo,e, no caso de Aristófanes, feito pelos sátiros e outros bichos; em "O Cheiro do Céu", é a nobreza cristã e a classe menos favorecida que se enrolam e se amam, num fenômeno que lembra também o teatro romântico de comédia, com entra-e-sai dos personagens, todos eles enganados e enganando, a escaramuça rolando solta, e a brincadeira sexual e ingênua, presente o tempo todo.
Para se produzir uma comédia, segundo os latinos tardios de depois de Cristo, o autor deveria começar a escrever algo sobre um grande problema entre nobres e plebeus a ser resolvido, e depois criar as reviravoltas para resolvê-lo, e por fim tudo se tornaria na mais profunda paz, sempre segundo um ensinamento moral, dito pela boca do protagonista. O Mário Viana seguiu a regra clássica, mas, no pano de fundo, deixou uma violenta crítica social e política. "A mais profunda paz" em que a comédia latina deve terminar, no texto de Mário, transforma-se na mais profunda falta de vergonha por parte dos políticos e da classe dos bem nascidos. Mas em nenhum momento o Mário deixa isso explícito. É na ação que a mensagem é passada ao espectador, isto é, o público entende o recado se ele já sabe que não é justo agir como os nobres agiram na peça. É a técnica quebrando regras e realizando a função do drama de forma diferente, o que caracteriza uma obra de arte. Se você prestar atenção nisso, quando for assistir ao espetáculo, vai ver que há coisas em nossa vida social que precisam ser mudadas, a começar pelo espírito do homem. É bacana ver um texto caminhar como um clássico e a mensagem do final não ser falada, mas ao mesmo tempo ser transmitida tão claramente. Observe isso quando for ver esse excelente labor dramatúrgico.
Eu não vou contar a história, mas tudo começa em um reino onde o rei não pode ter filhos. O cenário é simples e despojado, e a iluminação conversa amigavelmente com a comédia que está sendo apresentada. Não gostei, contudo, de deixarem o palco vazio de gente, em algumas cenas: o espectador fica olhando o nada, e, embora o cenário e a luz fiquem trabalhando, não há seres humanos ali. Teatro, e de comédia, tem de ser assim: saiu um, entrou o outro. A própria peça pede isso, essa rapidez; inclusive, os atores cumpriam bem esse papel, em muitos momentos. Não sei se eles "comeram barriga", como se diz, ou se o diretor realmente pediu para eles ficarem esperando mudar a luz para entrarem. Fica aqui registrado o meu convite para experimentar a entrada e saída de personagens de outra forma. Comédia pede gente em cena e agilidade na mudança.
Mas o elenco é ótimo. A menina que interpreta Angelina, a mendiga, é uma comediante que tem certeza daquilo que faz e tranquilidade na hora de fazer. Ela brinca em cena, e isso é uma coisa difícil de se conseguir: entender tão bem o texto do Mário Viana e apresentá-lo com a suavidade de quem toma um sorvete!
Enfim, um figurino de acordo com a leveza cômica do espetáculo e o diálogo que a sonoplastia fez

com o texto tornaram "Cheiro do Céu" um bom divertimento. O texto é uma obra de arte. Estão nos Parlapatões, sábados e domingos. Vá conferir!

3 comentários:

  1. Boa análise, Marcia, fiquei envaidecido. Tem um detalhe do figurino, ele é todo criado em cima de material reciclável. A própria roupa do bispo é, por ironia, toda coberta de fitinhas do bonfim... rs.

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  2. Oi Márcia,
    obrigada ela crítica! Muito bem escrita e o mais importante, construtiva!
    Fico feliz que tenha gostado e vamos ficar atentos aos detalhes apontados por você.
    Abraço,
    Vitória Angela (faço a Heliodora na peça e sou responsável pela trilha sonora)

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  3. Vitória, gostei muito da sua força e do seu timming. Infelizmente não tinha um programa à mão quando vim fazer o trabalho no pc, então fiquei devendo os elogios a sua técnica.

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