Fui assistir a Êxtase, do Mike Leigh. Tudo está muito bom, saí de lá gostando de tudo, e, por isso mesmo, preciso criticar. Êxtase é tocante. Tocante porque o autor apresenta personagens que sobrevivem de sub-empregos: um auxiliar de Sinagoga, uma caixa de posto, uma dona de casa e um trabalhador de construção civil, e, mesmo vivendo nessa pindaíba os caras arranjam um modo de se divertirem. Até a caixa de posto de gasolina, que é muito deprimida, vê a diversão como uma obrigação do ser humano, assim como escovar os dentes.
Mas eu não estou falando de diversão que o dinheiro pode comprar. Estou falando de ser feliz como puder ser, sem grana. É difícil ser alegre sem grana. Mas Mike Leigh quer dizer pra gente que isso é possível. O que resta, então? O que resta é a amizade.
Então a peça é sobre a amizade e sobre como a gente pode se divertir, se temos um amigo.Apesar de tudo ir contra . Por isso é uma peça tocante, e só por isso já vale a pena ir ver.
A iluminação é competente e corretíssima. No último momento, da última cena, o iluminador teve uma idéia genial. Eu sei que idéias geniais são raras, caso contrário, a gente via aparecer um Mozart novo, todo ano. Seria legal se houvesse mais momentos felizes, como aquele em que a luz vermelha é a última a apagar, anunciando o fim do espetáculo... Essa luzinha aí é arte, porque impacta emocionalmente o público e explica, do ponto de vista da iluminação, o que é a montagem, o que é o fim de uma peça sobre a existência do cotidiano...Mas o problema estético é que o naturalismo não quer mimos da luz. Por exemplo, pôr foco na cara do ator, em cada cena tocante, ia ficar um coco mole. O iluminador não fez isso. Ele acompanhou o texto.
Eduardo Estrela é um grande ator. Ele desenha Leo como o teatro deve desenhá-lo, isto é, com uma expressão mais forte, indicando o estado de alma do personagem. Se você for ver a peça, note como ele balança a cabeça pra mostrar a depressão e a luta por viver alegre junto dos amigos. É teatro, não é cinema. É a linguagem adequada, não é naturalismo babaca. Note o esforço que o Leo faz para ficar bem, a timidez que ele apresenta como forma de poesia. É por isso que eu digo que o ator passa o texto do dramaturgo por um filtro artístico seu, ou então não é ator.
Mário Bortolotto dá a dimensão do esforço pra ser feliz. Ele é o êxtase da peça. Alguém tinha de ficar com essa tarefa. Mick é um personagem que dá o som da poesia no texto. E o ator Mário Bortolotto não nega fogo. Outro dia li que ele estava se confundindo com as marcas. Ora, o personagem dele é confuso, é bobalhão, é apaixonado pela vida como forma pura em si, livre de qualquer pensamento. Ele é feliz porque,diante da falta de grana e de opções, sobra a criança que brinca. Atrapalhar-se com as marcas devia ser obrigatório, é um dos traços do personagem. Não vi nada de atrapalhado, mas, mesmo que fosse assim, combina perfeitamente com o espírito do Mick.
Amanda Lyra retira o riso fácil da platéia. Não sei se ela fez o EAD, mas essa escola tem tal estilo: procurar no naturalismo a nuance do personagem que fará rir ou chorar. Assim, Amanda Lyra prepara uma partitura vocal em que o público fica conhecendo a condição de vida da Dee, uma dona de casa com baixa escolaridade, sem nenhuma saída a não ser cuidar dos filhos, e ter de se conformar com isso. A pesquisa da atriz mostra seu profissionalismo. É difícil ver a Dee e não a comparar com alguma dona de casa que você conhece.
Erika Puga apresenta dignamente sua deprimida Jane, cujo êxtase é cultivar suas amizades. Ela dá o toque de naturalismo necessário, que o texto exige, e sabe fazer gestos corporais, pertencentes a um partitura do corpo que indica seu estado de alma, e esse falar de dentro da alma faz com que a gente fique desejando que ela eleve ao máximo a partitura vocal. Abrir os dedos dos pés indica que a Jane está cansada e dolorida, é um dos momentos de criação do ator, e é difícil trabalhar com o som, quando se tem uma queda para a plástica, e vice-versa. É uma atriz forte, que sabe o que é ser profissional e cumprir a sua parte.
Por fim, falemos da direção. Da direção não há nada a falar. O maestro regeu o espetáculo brilhantemente, sem apelações, e quando digo apelar digo impôr a presença no palco, junto com os atores, com contrastes que a gente sabe que não vieram deles ou da cena, mas da cabecinha do diretor. Ele não foi Robert, não quis aparecer, e essa é uma virtude. Significa que, paradoxalmente, ele estava presente o tempo todo, seja na aprovação de um cenário que funciona, no vozerio que indica que falta luz no apartamento da Jane, no modo de quebrar a cama, no timming dos atores, no figurino simples e bonito.
Vale a pena ver essa peça. Você não sente o tempo passando, você se emociona, aprende a consolar o seu amigo que ficou em casa, esperando aquele telefonema que não veio, e deixou de estar com você numa celebração de amizade e bebedeira.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
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